O Caso Menendez — Parte 01: O Crime que chocou Beverly Hills

 




Em 31 de outubro de 2002, Suzane von Richthofen, com a ajuda dos irmãos Cravinhos, assassinou seus pais. O crime chocou o Brasil por causa da violência e por outro fator determinante: Suzane era uma estudante universitária jovem, rica e bonita. Ela não possuía o perfil habitual de uma assassina. A mídia brasileira armou um verdadeiro circo midiático voraz ao cobrir o caso, enquanto a população brasileira acompanhava cada detalhe em choque. Suzane tornou-se uma espécie de personagem maldita que possui até hoje uma dualidade bizarra: a assassina fascina a audiência na mesma proporção que é odiada por causa do parricídio. A comoção em torno dessa persona enigmática era tamanha que, quando a mesma foi julgada pela primeira vez, a Revista Capricho mandou duas repórteres cobrirem o júri. A publicação adolescente criou um blog especial, onde as jornalistas davam detalhes sobre as audiências. Os textos oscilavam entre informações sobre o julgamento e detalhes sobre o modelito que a detenta estava usando no momento.





Lembro de ficar bastante chocada com a maneira como a imprensa brasileira lidava com essa situação, principalmente porque eu era na época uma estudante de Comunicação Social, e tinha um grande interesse pelo debate sobre questões éticas que permeiam a mídia. E foi justamente nesse período que eu ouvi falar pela primeira vez sobre o caso dos irmãos Menendez. Algum site, o qual não lembro especificamente, apontava as similaridades entre os dois casos. Os dois jovens também eram estudantes universitários abastados que mataram seus pais em uma das cidades mais ricas da Califórnia, Beverly Hills. Os crimes foram conectados pelo jornalismo marrom por causa de suas características e supostas motivações. Assim como Suzane, Lyle e Erik Menendez teriam cometido o homicídio por causa da fortuna dos pais. Por causa de uma série de incidentes, Jose Menendez e Mary Louise “Kitty” Menendez teriam decidido deserdar seus filhos. Antes da mudança de testamento, os filhos do casal compraram duas espingardas e, depois de uma discussão acalorada, abriram fogo contra seus pais enquanto eles assistiam televisão. 



Na época que li o artigo, não refleti muito sobre o assunto e achei realmente que o caso era bastante semelhante, e tinha sido orquestrado por jovens ricos e gananciosos. Porém, com o passar dos anos, minha opinião virou uma montanha-russa. Durante a pandemia, comecei a assistir alguns documentários sobre true crime no canal do Youtube do A&E e cai de paraquedas em um especial sobre os irmãos. Depois disso,  fiquei algumas horas meditando sobre o tema. Foi naquele momento que eu percebi que não estava diante de um caso tão simples. Era óbvio que não se tratava de um crime movido somente pela ganância. Existem aspectos muito obscuros presentes nesse duplo homicídio. Depois de muitos anos sem ouvir falar sobre o caso, vi que a Netflix iria lançar uma uma minissérie baseada no caso dos dois irmãos chamada “Monsters: The Lyle and Eric Menendez Story”. Depois de assistir os três primeiros episódios — e conhecendo alguns aspectos sobre o crime e o processo judicial, fiquei muito estarrecida com a construção da produção, a qual fetichiza completamente os irmãos. Ryan Murphy, um dos criadores da série, é conhecido por esse tipo de abordagem. Ele costuma contar as histórias criminais de forma vulgar, munido de um extremo sensacionalismo barato. Ele havia feito a mesma coisa ao contar o assassinato do estilista Gianni Versace.

O teaser do programa, assim como o homoerotismo interminável, sugere que os irmãos são amantes, o que é completamente fictício e parece uma tentativa barata de atrair mais atenção. (Ironicamente, há mais homoerotismo aqui do que em Dahmer, que, veja bem, trata de pessoas gays de verdade.) — Trecho do blog da professora Dahlia Schweitzer

Especialistas em cultura pop como Dahlia, e juristas consultados em programas televisivos, acreditam  que a série pode ter um impacto negativo no caso Menendez, o qual passa por um momento crucial graças ao aparecimento de novas evidências nos últimos anos.  Os irmãos terão uma nova audiência no dia 26 de novembro. Ben Chew, advogado que defendeu Johnny Depp em seu processo contra Amber Heard, disse em entrevista ao programa Law and Crime: Sidebard que a série pode ser prejudicial caso ocorra um novo julgamento, pois os jurados que assistiram ao programa podem acreditar que tudo o que foi mostrado por Murphy é verdadeiro.

Em uma carta que foi publicada na internet por Tammi Menendez, esposa de Erik, os irmãos reclamaram da maneira como foram retratados pela série. Como a produção é permeada por fatos reais e boatos que circulavam na época, Murphy apresenta várias versões que poderiam ter servido de motivação para o crime, as quais envolviam até mesmo cenas de incesto entre os irmãos. De fato é estarrecedor, mas quem conhece os trabalhos anteriores de Murphy sabe que ele não tem nenhum compromisso com a realidade.  Apesar dos pontos totalmente desnecessários que claramente são apenas uma desculpa para que Ryan possa deixar seus atores desnudos em cena, creio que a série tenha apenas um acerto. O roteiro é perspicaz ao oscilar entre elementos que fazem parte da tese da defesa e da promotoria. E, trinta e cinco anos depois, esse ainda é o retrato do caso. Por causa da cobertura circense feita pela imprensa na época do julgamento, a opinião pública balança até hoje entre acreditar na versão dos Menendez ou considerá-los algozes impiedosos. O circo foi tão gigantesco que o primeiro júri dos irmãos foi televisionado pela chamada Court TV, uma estação de TV a cabo que acabara de ser criada nos EUA. Os cidadãos estadunidenses assistiram os desdobramentos do caso ao vivo, como se tudo fosse uma espécie de novela. Até mesmo os programas televisivos de comédia se aproveitaram do caso. O Saturday Night Live apresentou um quadro que ironizava os depoimentos dos jovens. Por ser um crime ocorrido em Beverly Hills, uma das cidades mais ricas dos EUA, no coração de Hollywood, o caso ganhou uma proporção assustadora e relevância dentro da cultura pop muitos anos antes da febre do true crime ganhar tantos adeptos. O duplo assassinato dos pais ricos era a combinação perfeita de tragédia familiar, riqueza e violência.  Lyle e Erik foram extremamente desumanizados durante o seu julgamento, mesmo afirmando, com a ajuda de 51 testemunhas, que tinham sido vítimas dos mais variados tipos de abuso ao longo da vida. Com o passar do anos, filmes, séries e documentários continuaram a explorar o caso de maneira sensacionalista, tentando encontrar respostas simples, colocando-os como monstros ou como vítimas, sem nenhum compromisso com os envolvidos no caso. Só recentemente temos uma grande reviravolta no caso Menendez. Ele tornou-se o centro de vários debates sobre abuso, justiça e o papel da mídia. Tudo porque a Court TV disponibilizou o julgamento da dupla em seu canal de YouTube. Uma legião de jovens, que não conheciam nada sobre o crime, começaram a debater sobre o assunto na rede de vídeos TikTok, totalmente consternados pelos depoimentos de Lyle e Erik durante o julgamento. Eles criaram um movimento que visa libertar os irmãos Menendez. Estamos diante de um grupo barulhento e que se sente agredido pela minissérie criada por Ryan. Eu, que nunca tive nenhum envolvimento muito profundo com o assunto — e estava um tanto afastada desse universo de crimes reais, também senti vontade de falar sobre o tema depois de ver tudo aquilo que Murphy tinha apresentado. E o assunto é tão sério que até a própria Netflix fez um documentário como uma espécie de mea-culpa. Já que estão lucrando tanto com esse show de horrores de Murphy, eles resolveram dar oportunidade para que os Menendez também pudessem falar a sua versão. Alejandro Hartmann, diretor do documentário, mostra como esse caso transcende os limites de um simples crime. É um acontecimento entrelaçado por traumas, abuso e justiça. Menendez Brothers: Victims or Villains, minissérie documental lançada esse ano pela Fox Nation, também capta muito bem o assunto. Ela mostra como a cultura pop ajudou a moldar nossa percepção acerca do crime e sobre as nuances da moralidade em um universo frequentemente dividido apenas entre o bem e o mal. E acho que o jornalista Robert Rand resume muito bem o dualismo do caso em seu livro sobre o assunto:

Promotores, advogados de defesa e a mídia transformaram casos criminais de alto perfil em eventos esportivos, com os personagens reduzidos a vilões e mocinhos. A realidade é que a vida real é cinza. Erik e Lyle Menendez não eram nem completamente maus, nem completamente bons. Eles cresceram em um ambiente de crianças ricas mimadas em Princeton e Beverly Hills. A fachada da família vivendo na mansão em Beverly Hills era perfeita por fora. Mas, por trás dos portões, um casal altamente disfuncional criou dois filhos problemáticos. A verdadeira história dos irmãos Menendez nunca foi sobre dois garotos ricos e gananciosos matando Ozzie e Harriet às pressas para herdar o dinheiro dos pais.

Partindo desse ponto, quero abordar algumas nuances do caso em um especial de alguns capítulos. Pela complexidade do assunto, e pela fascinação do público por histórias trágicas, é bem notório que o público se engaja por esse crime real, pois deseja compreender quais são as dinâmicas familiares e sociais que podem levar a situações extremas, ainda mais quando isso ocorre em uma mansão em Beverly Hills. Inclusive, creio que dificilmente esse caso teria a mesma repercussão caso tivesse sido praticado em uma região periférica dos EUA. E isso acontece, pois um assassinato em uma região rica quebra a expectativa de que a violência é apenas um sintoma de uma área economicamente vulnerável. Essa ruptura desse ambiente supostamente pacífico e imune ao crime sempre gera muita comoção e uma cobertura midiática mais detalhada. Não foi diferente nesse caso.

Um pesadelo na Rua Elm




Na noite de 20 de agosto de 1989, uma série de tiros interrompe o silêncio da pacata Elm Drive, uma avenida repleta de mansões em Beverly Hills, cidade que faz parte do condado de Los Angeles. Os disparos são ouvidos por volta das 22h. Em tom de incredulidade por morarem em um local aparentemente tão seguro, os moradores da região acreditam instantaneamente que o som é o resultado de alguma peraltice infantil ou de fogos de artifício de alguma festividade. Uma jovem que aguardava seu namorado parece ter sido a única testemunha ocular do que de fato ocorreu. Ela vê dois homens na região. Eles pegam alguma coisa no bagageiro de um carro e entram em uma casa mediterrânea da região. Um pouco mais tarde, os irmãos Erik e Lyle Menendez — que tinham 18 e 21 anos respectivamente, chegam em sua casa, uma mansão localizada na 722 North Elm Drive, e encontram seus pais mortos em uma sala de estar da residência. Os jovens ligaram para a polícia às 23h:47.  Lyle parece estar em choque e chora copiosamente enquanto fala com a atendente, afirmando que seus pais foram assassinados. Ao fundo, Erik grita desesperadamente. 

Quando os policiais chegam na residência, a cena do crime é horripilante. O empresário José Menendez, e sua esposa Mary Louise “Kitty” Menendez, haviam sido assassinados a sangue frio. O ataque foi muito violento, visto que ambos possuíam ferimentos causados por armas de fogo de grosso calibre. Policiais tiveram que usar um guarda-chuvas para acessar a residência, pois havia material genético do casal até no teto da cena do crime. O casal estava dormindo quando o ataque aconteceu. José levou cinco tiros. Um deles, à queima-roupa na parte traseira da sua cabeça cabeça, o qual causou a sua morte instantânea. Kitty provavelmente viu toda a cena e, acordando em sobressalto, tentou fugir, mas foi abatida com dez tiros.

Cinco disparos atingiram Jose. Além do tiro à queima-roupa na cabeça, ele foi atingido no peito, no braço superior e no cotovelo esquerdo. Um ferimento "transfixante" na coxa esquerda deixou um corte de cerca de três polegadas de diâmetro. Na linguagem robotizada de sua autópsia, o “cérebro foi predominantemente eviscerado” pela “decapitação explosiva” causada pelo ferimento aberto de bala. Kitty tentou escapar de seus agressores, mas foi encontrada deitada sobre seu lado direito, a alguns pés dos pés de seu marido, com o rosto irreconhecível, uma massa gelatinosa. Todos os ossos de seu rosto estavam quebrados. A maioria de seus dentes estava estilhaçada. Ela foi despedaçada por nove, possivelmente dez tiros. Um deles quase arrancou seu polegar direito. Sua perna esquerda, com um grande ferimento no joelho, estava quebrada e dobrada em um ângulo de 45 graus. Sua perna direita estava esticada ao longo da prateleira inferior da mesa de centro. O moletom e as calças de Kitty estavam encharcados de sangue. — Trecho do livro The Menendez Murders.

Quando os policiais tentaram falar com os filhos, eles pareciam em estado de choque. Erik e Lyle foram interrogados naquela mesma noite. Pela sua emoção, os policiais não desconfiaram dos jovens, nem conferiram o que eles tinham dentro de seus carros. Os jovens narraram que tinha ido para o cinema ver License to Kill (1989), o 16º filme da franquia James Bond. Como a sessão estava lotada, ambos assistiram Batman (1989). Saindo do cinema, eles combinaram de encontrar o amigo Perry Berman em um festival gastronômico em Santa Monica. Berman esperou por um tempo, mas a dupla nunca apareceu. Horas mais tarde, Lyle ligou novamente para o amigo, que já estava se preparando para dormir, e pediu que se encontrassem ainda naquela noite. Meio relutante, Berman decidiu encontrar os irmãos Menendez em um restaurante local, pois o tom da voz de Lyle transmitia uma certa angústia. Perry mais uma vez esperou por algum tempo e novamente os irmãos não apareceram. Enquanto aguardava no carro, ele ouviu algumas sirenes. Seguindo os carros dos policiais, ele se deparou com os irmãos sentados no lado de fora da mansão, em estado de total perplexidade. Perry tentou confortar Lyle e Erik. Eles pareciam tão desesperados que a polícia sequer examinou suas mãos para detectar o possível uso de armas de fogo naquela noite. Nem mesmo abriram o porta-malas do carro de Lyle. Caso tivessem feito isso, teriam encontrado os cartuchos das armas que haviam sido compradas dois dias antes em um loja esportiva na cidade de San Diego. Eles dirigiram por cerca de duas horas para adquirir duas espingardas calibre 12. Em tom de deboche, Lyle disse na época que considerava os policiais muito incompetentes, pois caso tivessem feito o seu trabalho corretamente ambos teriam sido presos na cena do crime. Em entrevista para a jornalista Barbara Walters em 1996, Erik completou: "Foram doze tiros no centro de Beverly Hills em um domingo à noite, e ninguém chamou a polícia. Nós esperamos dentro da casa e ninguém apareceu."

Por seis meses, a polícia andou em círculos, acreditando que o crime poderia ter ligação com a máfia. Os negócios de José foram investigados. Na época, ele trabalhava na Live Entertainment, uma empresa de audiovisual responsável por filmes famosos na época, como Rambo. Lyle, inclusive, chegou a contratar seguranças, pois “temia por sua vida”. A polícia também não conseguia encontrar as armas do crime. Os assassinos de José e Kitty tinham até mesmo recolhido os cartuchos que foram disparados, pois suas digitais poderiam estar neles.
Enquanto os policiais buscavam por pistas, um clima de horror pairava sobre a vizinhança. Os vizinhos do casal temiam por suas vidas e acreditavam que José era algum tipo de mafioso, uma suposição baseada em sua nacionalidade cubana. Como Menendez era um executivo importante no ramo do entretenimento, as manchetes sobre sua morte rapidamente ganharam destaque no noticiário nacional. Muitas matérias assinadas na época tinham como título "Nightmare on Elm Drive", em alusão ao nome original da franquia A Hora do Pesadelo, que se chama A Nightmare on Elm Street. O artigo mais famoso foi escrito pelo jornalista Dominick Dunne, quando os irmãos Menendez finalmente foram presos pela polícia. Sem dúvidas, um pesadelo estava acontecendo em Beverly Hills, mas não fora Freddy Krueger quem executara o casal enquanto dormiam pacificamente.




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