02 abr. 21
Bela Vingança (Promising Young Women/2020) — Direção: Emerald Fennell
Na história do cinema, sempre existiram longa-metragens extremamente violentos e que colocam mulheres como as principais vítimas. Elas são mortas e violentadas de formas muito perversas. No horror, existe até um subgênero especializado nisso: o rape and revenge. Nessas películas, as protagonistas são abusadas sexualmente e se vingam de seus estupradores. Na maioria dos filmes, o trauma desencadeado por essas situações é completamente eliminado do roteiro. A personagem simplesmente se transforma em uma super heroína, uma espécie de “Rambo de saias”, que faz justiça com as próprias mãos.
E não é só o rape and revenge que explora esse conceito. As próprias final girls dos filmes slasher possuem também esse lado bizarro. Se elas sobrevivem até o segundo filme, quase sempre são eliminadas nos primeiros minutos do longa. Parece ser mais mais fácil repetir o ciclo de violência com outra atriz do que abordar questões psicológicas, de como as personagens lidam com suas cicatrizes. Afinal de contas, elas são sobreviventes e testemunhas oculares de crimes horrendos. O único filme que realmente lida muito bem com o assunto é o novo episódio da franquia Halloween (2018), onde Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) vive uma vida cheia de traumas causados pelo seu encontro com Michael Myers. Isso é a reconstrução da vida real. Nenhuma mulher que tenha passado por algum tipo de violência consegue superar de modo definitivo essas situações. Por essa razão, a maioria das representações oferecidas por filmes rape and revange são tão problemáticas. É uma banalização da violência contra a mulher. Em uma sociedade como a nossa, onde ocorrem tantos feminícidios, esses longa-metragens ajudam a perpetuar essa cultura abusiva, onde mulheres não possuem direitos sobre seus corpos. Estão sempre disponíveis, caso seja o desejo do patriarcado.
Um fenômeno recente são os longa-metragens rape and revenge dirigidos por mulheres. Vingança, longa de Coralie Fargeat, por exemplo, mesmo que ainda esteja muito preso no padrão narrativo estabelecido pelos homens da indústria, possui algumas mudanças importantes. A violência sexual contra Jennifer (Matilda Lutz) não é colocada em cena nos mínimos detalhes. A cineasta coloca também os homens em um estado de vulnerabilidade. Sempre é a mulher que está nua na tela. Aqui, o amante de Jennifer é que está despido. Eu já considerei isso um grande avanço.
Jennifer Kent, em seu longa The Nightingale, também usa um estupro como força motriz de seu filme. A cena é mostrada nos mínimos detalhes, focando em cada momento de sofrimento da protagonista. E ela não faz isso por sensacionalismo. Ela evita assim que o ato de violência seja erotizado, algo que é bastante comum em filmes rape and revange. Kent mostra a violência como ela é. É uma experiência brutal. Não existe fetiche no abuso.
Ano passado, foi lançado o longa-metragem Promising Young Woman, dirigido pela cineasta Emerald Fennell. Essa película subverte totalmente o subgênero do rape and revenge, mostrando que as mulheres vítimas de violência são destruídas por essas situações. Os traumas, desencadeados pela violação sexual, são devastadores. A protagonista Cassandra (Carey Mulligan) vira uma justiceira depois de perder sua melhor amiga, a qual se suicidou depois de ser abusada na faculdade. De dia, ela trabalha em uma cafeteria. Durante a noite, ela passa a interpretar uma personagem, a qual finge estar bêbada na balada ou em outras situações de vulnerabilidade, tornando-se uma presa fácil. Quando os homens tentam abusá-la, ela se vinga dos mesmos. No final do longa, ao contrário de outros filmes desse subgênero, Cassandra possui um destino trágico, mostrando que o empoderamento desencadeado pela violência contra mulheres é uma grande balela.
Emerald Fannel não poupa ninguém. Ela mostra que qualquer homem pode ser abusivo. Não existe um arquétipo padrão para quem comete algum tipo de violência contra uma garota. E isso é pontuado em vários momentos da película. Mocinhos com ternos bem alinhados, médicos de criança... Todos podem possuir um lado perverso.
Na conversa inicial do filme, três homens percebem que Cassandra está bêbada na festa. E, ao invés de ajudá-la, eles discutem, baseados em uma série de preconceitos culturais, de que a jovem, caso seja abusada por algum deles, provavelmente pediu por isso. Um homem, caso esteja completamente embriagado em uma boate, deve ser respeitado. Mas a vulnerabilidade feminina é um convite para o assédio. E a vítima será culpada pela sua própria tragédia, visto que não estava seguindo a cartilha de boas maneiras ofertada pela sociedade.
E como o diabo mora nos detalhes, a diretora coloca na película outros pontos muito relevantes. Quando o primeiro homem leva Cassandra para casa, ele coloca mais bebida no copo da protagonista, mesmo que ela já esteja completamente alcoolizada. Quanto mais álcool na corrente sanguínea, mais fragilizada ela ficará. No outro dia, quando ela caminha para casa pela manhã, usando roupas amassadas e com o cabelo levemente desgrenhado, ela é insultada por um grupo de trabalhadores. Em outro trecho, a única preocupação do abusador é se Cassandra é maior de 18 anos. O puro abuso do cotidiano, o qual já estamos acostumadas a vivenciar.
Na minha opinião, o que tornou o filme ainda mais chocante, foi a combinação dessa estética vanilla pop, cheia de cores pastéis, com uma trilha sonora cheia de músicas super girly, felizes e com letras empoderadoras. Qualquer espectadora desavisada acredita que está diante de um filme extremamente feminista. Há uma nova heroína no pedaço. Mas no fim de tudo, temos mais um corpo dizimado pelo sistema patriarcal. E o mais dramático é que o que acontece na tela é verdade, é parte da vida real. Trata-se de um grande compilado de abusos sofridos por mulheres.