O cinema Fantástico de Davi de Oliveira Pinheiro



Em mais um capítulo do Projeto Final Chica, hoje falo com o diretor, produtor e roteirista brasileiro, Davi de Oliveira Pinheiro. O cineasta é responsável por um dos primeiros longa-metragens do gênero fantástico filmados no estado do Rio Grande do Sul, Porto dos Mortos (2010). A produção, que recebeu dezoito prêmios internacionais, narra a jornada de um policial (Rafael Tombini), em meio a um mundo pós-apocalíptico, à caça de um perigoso assassino. Além da película, o realizador  dirigiu cinco curta-metragens. Seu trabalho mais recente é a série A Bênção, uma coprodução das produtoras Ausgang (fundada por Pinheiro, Emiliano Cunha e Pedro Guindani), Coelho Voador e Anti Filmes. Davi dirigiu quatro episódios do seriado, o qual tem estreia prevista para o final de setembro deste ano no Canal Brasil. Nesse bate-papo, conversamos sobre seus projetos no universo do cinema fantástico, suas influências e cinema de gênero no Brasil.


[FG] Davi, quando você percebeu que queria dirigir filmes? 

Foi cedo. Aconteceu numa das diversas vezes que meu pai alugou “Era uma vez no Oeste”, aquele VHS duplo, e comentou que eu devia assistir; que muito possivelmente ia gostar do filme. Desde cedo, o nome Sergio Leone tinha potência mitológica na minha casa. Foi ao assistir o faroeste “90% perfeito” de Leone — palavras do diretor, não minhas —, que fiz a eleição da direção como meu interesse maior. Ao ver a Claudia Cardinale chegando no Monument Valley (numa sequência que anos depois descobri ser copiada do cinema de John Ford), enquanto ressoava a trilha musical do Ennio Morricone, pensei: “é isso. O que eu senti agora, é o que quero fazer as pessoas sentirem durante a minha vida, não importa o que me custe”. Não sei se foi uma decisão técnica do estilo “quero ser algo”. Foi uma forma de doação, “quero fazer algo”, o que, ao rememorar, preenche de poesia o meu chamado ao sacerdócio.

[FG] Quais são as suas maiores influências na área? 

Na época que levou ao “Porto dos Mortos”, acho que Vigo, Truffaut, Spielberg, Sganzerla, Murnau, Mann, Malle, Leone, Lee, Kusturica, Godard, Fulci, Friedkin, Farias, DePalma, Cocteau, Carpenter, Browning, Bava, Almeida Prado, etc. São muitos nomes essenciais que se diluem com o passar dos anos e a experiência da idade; tornam-se um conhecimento assimilado. Ainda amo com paixão, mas a maneira como influenciam o meu pensar é tão diversa do que era quando realizava “Porto dos Mortos”, por exemplo. Sinto que não estou mais interessado em alcançar meus mestres — talvez nunca tenha sido um interesse real. O que procuro está em mim e é a particularidade de cada autor admirado que persigo, assim como o que há de único nas novidades da sétima e outras artes.

[FG] Como surgiu a ideia do filme Porto dos Mortos? 

Desde os roteiros de curta-metragem, meu grande interesse era pelos universos fantásticos. O universo do horror e dos filmes de mortos-vivos era o que me entusiasmava e onde via a possibilidade de realizar algo dentro de um orçamento controlado. A primeira versão, inscrita em editais de desenvolvimento, era influenciada por Sam Raimi e Peter Jackson, puxando para o cômico escrachado, com forte relação ao Sul do país e seus arquétipos, utilizando o molde clássico de George A. Romero, de estranhos presos num ambiente insalubre e lidando com suas diferenças, numa cruza estranha com “Fome Animal” e “Sonatine” (Takeshi Kitano). O tempo entre a escrita dessa primeira versão e a possibilidade de realização me permitiu repensar o genérico da ideia, que era apenas transpor para uma localização geográfica uma história corriqueira do gênero. Comecei repensando o conceito e se tornou um filme policial no apocalipse, com um personagem do lado da lei, perseguindo um assassino na terra devastada. Algo mais high-concept por assim dizer. Acabou por se tornar a ideia base para a versão final, que se modificou muito no processo de roteirização e posterior gravação, como você, que era uma pessoa presente neste processo, trabalhando com o Isidoro B. Guggiana, produtor do filme, acompanhou. Ou seja, a ideia surgiu de paixão por um tipo de filme e foi se transformando com o tempo, até se tornar um filme com zumbis ao invés de um filme de zumbis, e um filme muito mais particular do que eu esperava quando comecei a escrevê-lo. Flerto com a ideia de realizar em quadrinhos as versões alternativas de “Porto dos Mortos”. Da versão gaudéria cômica à versão interdimensional — que rendeu um argumento nunca visto por ninguém e perdido nas areias do tempo, e, com um pouco de ousadia, até arriscaria responder uma pergunta constante e que normalmente ignoro que é o constante: “e se você fizesse hoje?”.

[FG] Como é fazer cinema de gênero no Brasil? Quais são os pontos positivos e negativos?

Eu não faço cinema de gênero. Faço meu cinema. De uma maneira insular, que pode chegar em resultados que brilham em alguns momentos, e noutros não. Digo isso sem desfeita ao cinema de gênero — cujas variações são essenciais no diálogo com o grande público. No entanto, meu interesse e estudo pelos gêneros fantásticos tem a ver com um desejo de criação de imagens extraordinárias, dentro de um recorte muito particular. Apesar do conhecimento das regras, meu interesse é brincar com o audiovisual para expressar minha experiência de vida, o que me faz alternar entre o acessível e o hermético, a depender do gênero que utilizo; seja a fantasia, o horror, o melodrama, a ficção científica, o drama romântico etc.

[FG] Porto dos Mortos foi uma das primeiras produções fantásticas do RS. Por que você acha que o estado não investe tanto nesse subgênero? 

Não sei se hoje em dia procede. Temos muitas produções que trabalham com os gêneros fantásticos. A mais recente em formato longo é “Disforia” (2019), do Lucas Cassales. “Despedida”, de Luciana Mazeto e Vinicius Lopes, está em pós-produção. E existem outras obras que pelo menos flertam com os conceitos dos gêneros. Na época em que “Porto dos Mortos” foi realizado existia sim um pouco de restrição, mas em retrospecto, era uma restrição geral à produção audiovisual no Rio Grande do Sul, somada ao ainda nascente surgimento de uma geração formada pelo cinema fantástico dos anos 1980. Também temos um histórico de produção prévio ao “Porto dos Mortos”, em formatos longos, com filmes como “Um homem tem de ser morto” (1973), do David Quintáns, “Beijo Ardente/Overdose” (1984), da Flavia Moraes, e mesmo os associados geograficamente como “As Filhas do Fogo” (1978), de Walter-Hugo Khoury. O último, por sinal, tem Lino Bittencourt na produção, o pai do diretor de fotografia de “Porto dos Mortos”, Melissandro Bittencourt. No curta, tivemos autores como Dennison Ramalho, Fernando Mantelli, Rogério Assis Brasil, entre outros, para explorar o terreno do horror, e até mesmo Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado flertaram com o fantástico em “Barbosa” (1988).

[FG] Depois de Porto, você fez o curta The Soul Detective, que teve a participação do diretor David Lynch. Você poderia falar um pouco como foi essa experiência? 

É sempre estranho falar sobre este curta, pois é um filme do qual gosto muito, sem restrições. Ao contrário de outros filmes meus que respeito a opinião de quem desgosta, acho que quem desgosta desse tem uma opinião equivocada e deveria reavaliar a própria vida. Após esse rompante de autoritarismo digno do contemporâneo, explico que é um curta “de contrato”, não uma criação espontânea. Foi gravado depois de “Porto dos Mortos”, com a responsabilidade de ter uma entrevista com David Lynch, mesmo ante a excisão das possibilidades de realizar uma entrevista mais longa que cinco minutos. Com os cinco minutos gravados, iniciei um processo de construir um curta-metragem sobre a entrevista, criando imagens que permitissem associações estéticas, temáticas e sensoriais com o que era dito por Lynch; na contramão do trabalho dele, construí sentidos, já que não me interessava copiar seu estilo surrealista, para não cair na obviedade e falta de imaginação que uma mera emulação sugere. Admito ser o raro filme o qual faria uma “versão do diretor”. Não por um desejo de voltar e solucionar o filme, mas porque acho que poderia ganhar mais artisticamente, sem a presença da entrevista realizada com o David Lynch. Voltar a ele e testar esta possibilidade é algo que sempre me pareceu interessante e condizente com o viés totalmente experimental do curta, que ao invés de tentar ser “parecido” com o universo lynchiano — o que seria absurdo e medíocre — vai ao oposto, brincando com a matemática do cinema e possibilidades de experimentação, mais godardianas que lynchianas; passando por uma dose do universo de cineastas, como David Cronenberg e Walter Hill, e bebendo muito do — na época inédito — “Porto dos Mortos”; inclusive resolvendo melhor algumas questões estéticas propostas pelo longa-metragem.

[FG] Em Another Empty Space, você sai um pouco do terreno do fantástico. É um filme muito tocante. É uma visão bem interessante sobre relacionamentos. É difícil falar de amor sem cair em velhos estereótipos? 

Acredito que o filme é um pouco datado, mesmo que tenha “apenas” cinco anos. Não acho que falar de amor seja difícil — noto que em suas várias formas é um dos meus assuntos criativos principais, independente do gênero narrativo em que esteja trabalhando. Acho que é preciso considerar que nossa relação com os sentimentos amorosos e, principalmente, a ideia de amor romântico mudou. No entanto, ainda estamos presos a certos arquétipos introjetados em nossa psique pela cultura popular através da literatura, cinema, música popular e que precisam de olhar crítico… Acredito que o criativo deve estar ciente dos ventos de mudança e usá-los para aprender mais sobre si e talvez iluminar algumas verdades para outrem, no percurso da autodescoberta.

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