Annabelle Lee, lendas e yüreis católicos: a odisseia do cinema de horror peruano



O Peru é um país dividido em 196 províncias, distribuídas entre regiões repletas de lendas e histórias impressionantes. Por essa razão, essa nação transformou-se em um dos grandes celeiros do horror da América Latina. Monstros mitológicos da floresta amazônica, demônios do incesto que vagam pelos Andes, cabeças de bruxas voadoras, fantasmas sedutores, cemitérios e casas mal-assombradas. Há terror para todos os gostos. E toda essa história começou pelo pioneirismo de um homem, o produtor Enrique Torres Tudela

O início: O misterioso Enrique Torres Tudela 



Nos anos 60 e 70, várias coproduções de horror entre países da América do Sul e Estados Unidos começaram a ser realizadas pelo produtor e roteirista Enrique Torres Tudela. Ele era um completo desconhecido e não tinha nenhum background na área. O seu primeiro longa-metragem feito no Peru foi a aventura Terror in the Jungle (1966), codirigido por Andrew Janczak, Tom DeSimone e Alejandro Grattan. Tudela escreveu o roteiro da película e, depois dessa experiência, se dedicaria somente ao cinema de terror de baixo orçamento, tanto na Argentina quanto em solo peruano. Em 1968, tornou-se o coordenador de uma produtora estadunidense, chamada Northwest Pictures Film Corporation e, através dessa empresa, produziu dois filmes com o elenco de novelas peruanas. Assim como fez na Argentina, combinou os atores locais com astros internacionais. As produções eram Anabelle Lee e Boda Diabólica, ambas protagonizadas pela atriz hollywoodiana Margaret O'Brien. Dois cineastas dos Estados Unidos ficaram responsáveis pelas películas. Harold Daniels dirigiu Annabelle Lee, enquanto Gene Nash ficou a cargo de Boda Diabólica. Como acontecia muito na época, os dois filmes foram filmados ao mesmo tempo, o que exigiu uma grande ginástica por parte dos atores. Depois de produzir os dois longas no Peru, Tudela nunca mais efetuou nenhum projeto em seu país de origem. Produziu mais algumas películas na Argentina e um filme no México. Depois disso, sumiu sem deixar nenhum rastro. Muito se especula sobre ele. Ninguém sabe exatamente de onde ele retirava o dinheiro para produzir os seus filmes. E como continuava obtendo orçamento, mesmo não conseguindo lançar a maioria dos longa-metragens comercialmente. Segundo informações do livro Crimen, sicodelia y minifaldas : Un recorrido por el museo de la Serie B en el Perú 1956-2001, Tudela era patrocinado por um grupo religioso estadunidense.

 Annabelle Lee

O longa-metragem é o primeiro filme de horror do Peru. É uma adaptação do poema homônimo de Edgar Allan Poe. Foi produzido e roteirizado por Tudela. Por se tratar de uma coprodução Peru – Estados Unidos, a atriz Margaret O’Brien estrelou a fita, junto de um grande elenco de atores peruanos, como Inés Chacha Hormazabal, Patricia Aspíllaga e Fernando Larrañaga. Tudela desenvolveu na América do Sul uma série de películas em conjunto com diretores e pequenos produtores dos EUA. O elenco sempre continha atores locais e estrelas do cinema hollywoodiano que tinham sido muito famosos no passado, mas que estavam vivenciando uma certa decadência em suas carreiras no mercado estadunidense. Foi o caso de Margaret. A atriz, que havia ganhado o Oscar na infância pelo filme Agora Seremos Felizes (1944), topou participar das produções peruanas pela escassez de trabalho em sua terra natal. A atriz, que tinha 32 anos na época, não conseguia mais tantas propostas como outrora. 

Margaret O'Brien
Em quesitos técnicos, Annabelle Lee foi dirigido por Harold Daniels, um cineasta que não possuía muita experiência com cinema. Já havia trabalhado em produções televisivas nos Estados Unidos. A película foi gravada nos estúdios da Panamericana Televisión. Era uma produção destinada para a televisão dos EUA. Por essa razão, os atores peruanos se empolgaram muito em participar da película. Queriam mostrar seu trabalho em outro país. Mas, assim como outras produções de Tudela, o filme nunca fora lançada oficialmente. A película ganhou uma exibição restrita em algumas salas americanas no lançamento de Boda Diabólica em 1971. Em 1974, foi “relançada” informalmente em alguns cinemas pequenos dos Estados Unidos, e é essa data que é apresentada em sites, como o IMDB. Por isso que há tanta contradição quando se fala sobre esse longa-metragem. Muita gente acredita que, por causa desses dados, o filme de 1968 nunca existiu. Algo que corrobora para essa versão da história é o fato de que Enrique Tudela sumiu com todas as cópias do longa após essas exibições. Assim, os peruanos nunca tiveram a oportunidade de assistir o primeiro longa-metragem de terror de seu país.

Boda Diabólica 



Boda Diabólica, o longa-metragem que foi gravado ao mesmo tempo que Anabelle Lee, foi lançado em 1971 em alguns cinemas americanos. A película possuía o argumento da autora de novelas e atriz Gloria Travesí. Segundo o livro Crimen, sicodelia y minifaldas :Un recorrido por el museo de la Serie B en el Perú 1956-2001, o produtor Enrique Torres Tudela deu um tom gótico para a produção, claramente tentando reproduzir as películas da produtora Hammer. Dirigido por Gene Nash, o filme chegou a ser exibido em alguns cinemas dos EUA em 1971, mas nunca teve um lançamento comercial no Peru. Foi relançado em 1974 em algumas salas, assim como Annabelle Lee. Teve uma sobrevida em 1983, quando chegou a ser exibido na Cidade do México. A única cópia sobrevivente do filme se encontra na Filmoteca de Lima

El Inquisidor (El Inquisidor de Lima)

 

Em 1975, surge uma nova coprodução no pedaço, só que entre Argentina-Peru. Trata-se de El Inquisidor, película dirigida pelo diretor argentino Bernardo Arias. O filme narra uma série de crimes sinistros que estavam acontecendo em Lima. Várias jovens são queimadas vivas por homens que se intitulam seguidores da Santa Inquisição. O grupo leva o terror para a capital peruana até finalmente se deparar com turistas argentinas destemidas, as quais são realmente praticantes de bruxaria. O filme foi censurado na Argentina pelos órgãos da Ditadura Militar. Foi relançado onze anos depois com o título El fuego del pecado.

El Sol de los Muertos (1985) 

Depois de El Inquisidor, o cineasta francês Jeff Mussó produziu em solo peruano a película apocalíptica de terror El Sol de los Muertos. Filmada entre em 1983 e 1984, o filme nunca estreou. O único registro que encontrei sobre o longa-metragem na internet é feito pelo crítico peruano Rodrigo Bedoya, uma das maiores autoridades sobre o cinema do país, autor do livro Un Cine Reencontrado: Diccionario ilustrado de las películas peruanas (1997). Ele descreveu alguns detalhes sobre a película em seu blog, Páginas del diário de Satán
Uma narração solta e confusa ligou um episódio da época a outros da década de 80 e em um futuro indefinido, mas próximo. Histórias que encontraram um denominador comum na formulação de presságios esotéricos e apocalípticos capazes de escurecer o céu de Lima. No começo, o filme parecia uma recreação sem esforço (...) da Lima colonial e do começo da República. Mas, de repente, foi apontada uma derivação fantástica cujas insinuações, mais ou menos perturbadoras, foram diluídas ou capturadas pela rigidez do projeto. 
 
A cena de horror peruana ficou adormecida por alguns anos. E só começou a ter uma sobrevida a partir dos esforços de diretores do interior do país. Apesar da maioria desses longa-metragens terem sido produzidos em VHS, com um baíxissimo orçamento, e uma distribuição limitada, eles foram importantíssimos para que a produção se mantivesse viva. E mais do que nunca, no Peru, essas histórias de terror regionais são muito mais do que contos sobre monstros. São registros importantes sobre a cultura das províncias. E um reflexo de como essas comunidades lidam com as questões sociopolíticas. 

As histórias de Loreto 


Por muitos anos, a cena de horror de Lima estava totalmente abandonada. Tanto que quando eu comecei a entrevistar as pessoas sobre o Peru, eles me garantiram que o primeiro filme de terror peruano tratava-se de Cementerio General, dirigido por Dorián Fernandéz-Moris. E esse longa-metragem foi lançado apenas em 2013. Eu confesso que achei estranho e comecei a procurar por mais informações sobre o assunto. Foi então que eu descobri que essa película, apesar de ser uma produção comercial de “Lima”, além de não ter sido o primeiro longa-metragem de terror peruano, tem um que de cinema regional, pois explora as lendas do cemitério da cidade de Iquitos, capital da região de Loreto, localizada na Amazônia peruana. O local é conhecido por suas histórias fantasmagóricas. Dorián se interessa bastante pela cultura da região amazônica, pois sua família materna é da província. Tanto que seu média-metragem, Chullachaqui (2007), é a adaptação da lenda do personagem homônimo, o qual é uma espécie de "monstro" que se transforma em pessoas conhecidas de suas vítimas. É uma história bem tradicional, que varia de povoado para povoado. Em alguns pontos da selva ele é um duende, em outros pontos uma espécie de guardião da floresta e, até mesmo, a própria encarnação do coisa ruim. Em 2016, Moris retornou para Iquitos para produzir uma história sobrenatural que se passa no hospital da cidade. Trata-se de Maligno. O filme é dirigido por Martin Casapía Casanova e Francisco Bardales.


 
O Fantasma de Arequipa

Uma das lendas mais famosas da cidade de Arequipa é a de Mónica, a condenada. Trajando um vestido branco, o espírito da jovem falecida sai todos os dias de seu túmulo no Cemitério Geral de la Apacheta, vagando pela noite, a fim de seduzir homens que circulam pelas redondezas. A história fantástica acabou virando um filme em 2006, pelas mãos do cineasta Roger Acosta Escobar. Eu o entrevistei aqui no blog.



Os demônios do incesto de Ayacucho e o terrível Pishtaco

Ayacucho é uma província localizada na região andina do Peru. Por anos, a população sofreu nas mãos do grupo Sendero Luminoso. Talvez, o reflexo mais evidente disso, tenha sido essa produção de horror tão volumosa.



Tudo começou por aqui em 2002, graças a produção de baixo orçamento Qarqacha - El demonio del incesto (2002), dirigido po Mélinton Eusebio. É um filme que mistura duas raízes fortíssimas do Peru: a cultura indígena e o catolicismo. A Qarqacha é, na mitologia andina, um humano que praticou relações sexuais incestuosas. Por essa razão, foi transformado em um monstro por Deus. Trata-se de uma lhama de duas cabeças (podendos ter até três). Nesse estado, ela hipnotiza suas vítimas, matando-as. Eusebio não foi o único diretor a abordar essa lenda. Palito Ortega Matute fez uma trilogia sobre esse monstro andino: Jarjacha: incesto en los Andes (2002), La maldición de los Jarjachas (2003) – ambos de baixíssimo orçamento, e El demonio de los Andes (2014), o qual foi realizado com um financiamento compatível com o das produções feitas em Lima. Sin Sentimiento (2007), película de Jesús Contreras, também aborda o mito. 

La maldición de los Jarjachas

Outra lenda muito abordada pelos cineastas de Ayacucho é a história do Pishtaco. Também conhecido como Nakaq e Kharisiri, essa é a uma história muito conhecida na região andina boliviana e peruana. Pishtaco é um assassino degolador e canibal, que vende a gordura de suas vítimas. Quase sempre é representado pela figura de um estrangeiro branco. Na província, ele rendeu dois filmes: Pishtaco (2003), dirigido por José Antonio Martínez e Nakaq (2003), de José Gabriel Huertas

Se em Hollywood temos os grandes confrontos entre os grandes mitos do terror, como Freddy x Jason (2003), Alien vs. Predador (2004), em Ayacucho não é diferente. Em 2011, o diretor Nilo Escriba Palombo dirigiu a batalha lendária dos Andes peruanos: Jarjacha vs. Pishtaco: La batalla final.

Em seu artigo El género de horror en el cine regional andino peruano, o pesquisador Emilio Bustamante fez uma interessante analogia entre esses personagens lendários e a escalada de violência que viveu Ayacucho no passado. Ao filmar esses longas, ele mostra que os cineastas de  Ayacucho não estão somente registrando as lendas da região, mas lidando com seus próprios "fantasmas":

esses filmes representam simbolicamente o terror sofrido durante o conflito armado interno que o Peru experimentou entre 1980 e 1992 e que confrontou os grupos subversivos PCP-Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Túpac Amaru com o Estado peruano. Os jarjachas, seres incestuosos que à noite se transformam em animais monstruosos que devoram o cérebro de suas vítimas, representariam o inimigo interno, emergido da própria população, em alusão aos militantes do Sendero Luminoso oriundos das comunidades atacadas; os pishtacos, seres estrangeiros que extraem a gordura dos colonos nativos para afinar os sinos das igrejas ou as máquinas de automóveis das indústrias urbanas, representariam o inimigo externo, tanto os forasteiros sediciosos quanto os membros das forças da ordem; e os condenados, aqueles que retornam após a morte para coletar novas vítimas, aludem ao medo que ainda existe de que a violência dos anos passados ​​ressurja.

Melintón Eusebio reapareceu em 2004, lançando seu segundo filme Almas en Pena, baseada em uma história muito popular e que talvez revire seu estômago. A lenda narra a existência de almas que vagam em nossa realidade e que, para vê-las, basta você colocar remela de cachorro nos seus olhos. Em 2005, Lalo Parra Bello dirigiu Uma, cabeza de bruja, onde abordou o famoso mito sobre Uma, a cabeça voadora de uma bruxa, a qual pode se separar de seu corpo, a fim de perseguir pessoas e seduzir homens. 

Junín

De Junín vem Sangre y tradición (2005), uma história baseada na lenda de Pishtaco. Durante o ano novo, o casal Ramiro e Liz se preparam para celebrar o réveillon. Porém, o terrível assassino mata cruelmente Liz. Para que a alma da jovem finalmente encontre o descanso merecido, Ramiro parte em uma jornada de vingança contra Pishtaco. A direção é de Nilo Inga.



Da mesma região, ainda temos El Tunche, misterios de la selva (2006). Também dirigido por Inga, apresenta a história de um grupo de estudantes que vai até o distrito de Pichanaki, na selva amazônica, procurar por plantas medicinais. Lá, ficam sabendo sobre a morte de um ex-colega, envolta de muitos mistérios. Eles resolvem investigar o assunto, ignorando os apelos dos habitantes do local. Ao chegar na selva, são surpreendidos pelo El Tunche, o espírito da floresta. E ele não está feliz em vê-los nos seus domínios.


O mito do El Tunche é muito famoso na região amazônica peruana. A lenda possui várias versões. Uma delas é a seguinte: um homem que teve uma morte muito violenta e vaga pela floresta, procurando vítimas em potencial, preferencialmente quem se perde dentro da selva.

Puno




Puno é uma região localizada ao sul do Peru, próxima do lago Titicaca. Lá, o cineasta local Henry Vallejo também fez sua versão para a lenda do Pishtaco. É o filme El misterio del Kharisiri (2005). Ainda na região, Joseph Lora dirigiu La Casa Embrujada (2007). Jovita, uma menina de nove anos, muda-se com a família para uma nova casa, a qual possui uma série de mistérios sobrenaturais. 
Em 2013, foi lançada a película La Maldición del Pagachi. Dirigida pelo coletivo Cine Aymara Studios, o longa conta a história do sequestro e sacrifício de um grupo de estudantes. O ritual, que seria uma oferta para a terra, sai totalmente do controle. O grupo também produziu em 2011 a fita La Leyenda Del Condenado, um longa que mescla terror e comédia, dirigido por Francisco Torres. O longa narra a história de um grupo de estudantes de medicina que vão até um cemitério conseguir um corpo para efetuar uma série de estudos, mas vários eventos sinistros começam a acontecer depois que o corpo desaparece misteriosamente.  

O cinema comercial de Lima: Yüreis, cemitérios e outras histórias 



A América Latina também se inspirou no cinema japonês, assim como os Estados Unidos e outras partes do mundo. Então, é perceptível que o cinema peruano comercial se apropriou de elementos fantasmagóricos que lembram – e muito, filmes como O Grito, O Chamado, etc. Segundo Gabriel Ejaiek-Rodriguez, em seu livro The Migration and Politics of Monsters In Latin American Cinema, os peruanos, por não possuírem familiaridade com o budismo, adaptaram a tradição dos fantasmas yürei, usando o catolicismo. É o caso dos longa-metragens La Entidad (2015), dirigido por Eduardo Schuldt e No estamos solos (2016), de Daniel Rodríguez Risco. Dorián Fernández-Moris, tanto na franquia Cementerio General, quanto em seu filme Secreto Matusita (2014), explorou também esse viés, também usando outros elementos tradicionais do terror, como o tabuleiro de Ouija. 


Outro ponto que é bem notório, tanto na filmografia de Dorián, quanto em outros longas contemporâneos que estão sendo produzidos em Lima, é que, apesar dos diretores estarem priorizando por fazerem longa-metragens mais “neutros”, por assim dizer, como uma linguagem mais “internacional”, que possam fazer sentido para qualquer audiência, eles têm buscado também explorar lendas e histórias locais. Muitas delas que só haviam sido registradas pelos cineastas regionais. É o caso dos filmes Yuraq (2019), dirigido por Pierre Taisn, que explora a mitologia andina do Pishtaco. Em 2014, Frank Pérez-Garland já tinha ido nessa mesma direção ao lançar La Cara del Diablo. O longa conta a história de um grupo de jovens que vão para a selva de Tarapoto, na província de San Martín, e precisam enfrentar um espírito maligno de grande poder. É uma nova releitura da lenda do El Tunche. Essa história já havia sido contada pelo cineasta da província de Junín, Nilo Inga. Isso indica que Lima pode até ter os maiores orçamentos, mas o que tem mantido mesmo o cinema de terror vivo no Peru são os realizadores regionais. Foram eles que continuaram produzindo no momento de ostracismo da indústria cinematográfica peruana “principal”, e que transformaram em cinema as principais lendas peruanas, as quais agora inspiram os cineastas mais comerciais.

Mais sobre o cinema de horror peruano:

 Mónica, más allá de la muerte: o cinema peruano de horror de Roger Acosta Escobar

 O cinema peruano de ontem e hoje: Entrevista com o pesquisador Jose Carlos Cano López 

O terror peruano segundo Ernesto Zelaya Miñano

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