Gabriela Amaral Almeida: A arte de filmar o terror do cotidiano





Durante essa radiografia do cinema de terror latino que estou desenvolvendo aqui no blog, pude observar que a quantidade de mulheres que trabalham com o terror na América Latina é bastante limitada. O Brasil, por sua vez, é o lugar que possui o maior número de diretoras explorando o fantástico, como Juliana Rojas, Anita da Silveira e Gabriela Amaral Almeida. Hoje, no projeto Final Chica, entrevisto uma dessas mulheres tão talentosas da cena brasileira, a diretora Gabriela Amaral Almeida. A cineasta é uma das maiores expoentes do cinema brasileiro atual. É uma realizadora que tem um estilo próprio de filmar muito interessante e um grande conhecimento teórico sobre o terror. Com grande maestria, ela aborda em seus filmes o lado fantástico da realidade, a violência do cotidiano e o lado sombrio do ser humano. Seu primeiro filme, O Animal Cordial, foi lançado em 2017. Seu mais novo projeto, A Sombra do Pai, chegou aos cinemas nessa semana. 
 
 

[FG] Quando você começou a se interessar por terror? 

Desde antes de aprender a ler, assistia aos filmes de terror disponibilizados na TV aberta e nas videolocadoras - anos 80/90, a festa do filme norte-americano de gênero por aqui. De tanto assistir a filmes de gênero (e não apenas o terror), eles acabaram penetrando na minha sensibilidade; de modo que não consigo separar contar-uma-história de contá-la através de sentimentos como medo, angústia, tensão, pavor etc.

O Animal Cordial, seu primeiro filme, propõe uma alegoria muito interessante sobre o Brasil, conflitos de classe, essa coisa toda. Como foi o processo de criação do filme? 

O Animal Cordial parte de um argumento escrito em parceria com Luana Demange (diretora de arte de meus curtas e artista plástica), depois de sabermos que um restaurante que costumávamos frequentar, aqui em São Paulo, havia sido assaltado. A partir desta centelha, começamos a nos fazer perguntas sobre qual o lugar da violência (e o da promessa de segurança), no Brasil; como isso pode ser monitorizado; e como o medo mantém as pessoas nesse estado constante de paralisia e isolamento. Era 2015, o país estava fervendo em ódio (vésperas do impeachment da presidente Dilma Roussef) e o ar estava pesado. Daí a escrever um roteiro sobre essa situação foi um pulo. Estava no ar, sabe? Nós só riscamos o fósforo.

[FG] Muita gente fala que o longa é um slasher, mas eu acho que é algo muito mais profundo, pois a violência do longa se constrói mais em elementos primitivos do ser humano. O personagem do Benício tem uma coisa meio Coringa. É justamente quando o homem/mulher se cansam das regras sociais, da própria violência e se transformam em "animais".  De que maneira a nossa realidade de violência influenciou na construção do filme?

A questão da classificação do filme como um slasher não tem a ver com a qualidade ou falta dela, eu acredito. O slasher é um subgênero do terror, que gerou muito filme raso, sim, mas como formato também oferece um espaço de criação muito rico. Com isso, quero dizer que nenhum gênero narrativo é ruim, per se. O Animal Cordial é um slasher por trabalhar com elementos característicos deste formato - a violência gráfica; a existência de um executor/assassino/o sangue como elemento dramático central etc. Estas características, no entanto, estão lá a serviço do drama de personagens que considero complexos e contraditórios. É precisamente neste lugar que a gente "descola" do gênero como mecânica de narrativa e partimos para o aprofundamento das relações entre os personagens. Esse aprofundamento, é bom que se diga, não é uma questão de gênero (narrativo), mas de dramaturgia - tanto de texto, quanto visual. Quanto a nossa realidade violenta e cada vez mais cruel, essas coisas estão no ar, sabe? A forma como eu me relaciono com o mundo tem a ver com a captação dessas frequências - o que tudo isso produz no meu inconsciente, nas minhas pulsões de vida, mas também de morte. O processo criativo, para mim, é uma decodificação (ou uma tentativa de) do que me afeta, emocionalmente.

[FG] Uma coisa que eu gosto muito no teu primeiro longa e nos curtas que tive a oportunidade de assistir é que você não tenta seguir fórmulas, regras, que já estão bem estereotipadas nesse mundo do cinema de terror. É difícil encontrar uma voz própria em um gênero que tem tanta coisa já sendo sugerida? 

Acho que o que você chama de voz acontece quando um artista entende o seu lugar no mundo. Ok, estou aqui, agora, estas são as minhas questões filosóficas, isso é o que me toca etc, então de que forma eu posso transformar isso tudo - que está dentro de mim - em algo que provoque uma outra subjetividade? É uma forma de autoconhecimento, isso de achar a sua voz, porque no princípio é você e sua fé no que você sente. E só. Você e a crença. Você e o desejo. Não existe parâmetro e/ou legitimação prévia, não existe um chão - daí vem também a adrenalina de estar desbravando uma coisa que nem você ainda sabe dizer se presta ou se funciona. Na minha opinião, todos os gêneros narrativos já estão mapeados e estabelecidos de alguma forma; há de se entrar nas histórias não através dessa estrutura de texto (que gera falsa segurança), mas no escuro total; usando a "lanterna" de um gênero narrativo, sim, mas mantendo o espaço ao redor no breu total. O gênero narrativo é uma chama que carrego comigo para iluminar o inconsciente, que desbravo à medida que escrevo as minhas histórias. 

[FG] No seu mais novo longa, você aborda a questão da paternidade, luto, pobreza. Por que você se interessa tanto pelo terror da vida real?

Porque a vida real é dura e áspera. Porque por mais que tenhamos nossas necessidades materiais supridas, ninguém, absolutamente ninguém está livre do medo original: e a morte, quando vem? E como vai ser? A realidade é assustadora nos mínimos detalhes.

[FG] Por que você acha que não existem tantas mulheres dirigindo filmes de terror?

É uma questão de ordem financeira. Não de sensibilidade - o primeiro romance de horror/ficção científica foi escrito por uma mulher (Frankenstein, Mary Shelley). A diferença entre escrever um romance e dirigir um filme, no entanto, é imensa. Na escrita de um romance, a mulher está confinada ao ambiente doméstico; a tarefa é solitária e depende única e exclusivamente da resistência do autor. No cinema, que é uma atividade outdoors e de hierarquia bastante marcada, os postos de comando já estão culturalmente mapeados há anos - e pertencem, adivinhem só, aos homens. O desafio para uma mulher dirigir um filme é o mesmo de outras mulheres em relação à produção de conhecimento/cultura que envolva dinheiro e poder na base de sua criação: medicina, áreas da ciência, matemática, física etc. Chegar em qualquer posição de destaque, para a mulher, é um perrengue, sabe? Mas estamos aí, tentando e tentando. E tentando de novo.

[FG] O que você mais gosta no cinema de terror brasileiro?

O frescor, a mistura de referências, a liberdade nas formas narrativas.

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