03 mai. 19
Gabriela Amaral Almeida: A arte de filmar o terror do cotidiano
Durante essa radiografia do cinema
de terror latino que estou desenvolvendo aqui no blog, pude observar que a quantidade de mulheres que trabalham com o
terror na América Latina é bastante limitada. O Brasil, por sua vez, é o lugar
que possui o maior número de diretoras explorando o fantástico, como Juliana
Rojas, Anita da Silveira e Gabriela Amaral Almeida. Hoje, no projeto Final Chica, entrevisto uma dessas mulheres
tão talentosas da cena brasileira, a diretora Gabriela Amaral Almeida. A cineasta é uma das maiores expoentes do
cinema brasileiro atual. É uma realizadora que tem um estilo próprio de filmar muito
interessante e um grande conhecimento teórico sobre o terror. Com grande
maestria, ela aborda em seus filmes o lado fantástico da realidade, a
violência do cotidiano e o lado sombrio do ser humano. Seu primeiro filme, O Animal Cordial, foi lançado em 2017. Seu mais novo projeto, A Sombra do Pai, chegou aos cinemas nessa semana.
[FG] Quando você começou a se interessar por
terror?
Desde antes de aprender a ler, assistia aos filmes de terror
disponibilizados na TV aberta e nas videolocadoras - anos 80/90, a festa do
filme norte-americano de gênero por aqui. De tanto assistir a filmes de gênero
(e não apenas o terror), eles acabaram penetrando na minha sensibilidade; de
modo que não consigo separar contar-uma-história de contá-la através de
sentimentos como medo, angústia, tensão, pavor etc.
O Animal Cordial, seu
primeiro filme, propõe uma alegoria muito interessante sobre o Brasil,
conflitos de classe, essa coisa toda. Como foi o processo de criação do filme?
O Animal Cordial parte de um argumento escrito em parceria
com Luana Demange (diretora de arte de meus curtas e artista plástica), depois
de sabermos que um restaurante que costumávamos frequentar, aqui em São Paulo,
havia sido assaltado. A partir desta centelha, começamos a nos fazer perguntas
sobre qual o lugar da violência (e o da promessa de segurança), no Brasil; como
isso pode ser monitorizado; e como o medo mantém as pessoas nesse estado
constante de paralisia e isolamento. Era 2015, o país estava fervendo em ódio
(vésperas do impeachment da presidente Dilma Roussef) e o ar estava pesado. Daí
a escrever um roteiro sobre essa situação foi um pulo. Estava no ar, sabe? Nós
só riscamos o fósforo.
[FG] Muita gente fala
que o longa é um slasher, mas eu acho que é algo muito mais profundo, pois a
violência do longa se constrói mais em elementos primitivos do ser humano. O
personagem do Benício tem uma coisa meio Coringa. É justamente quando o
homem/mulher se cansam das regras sociais, da própria violência e se
transformam em "animais". De
que maneira a nossa realidade de violência influenciou na construção do filme?
A questão da classificação do filme como um slasher não tem
a ver com a qualidade ou falta dela, eu acredito. O slasher é um subgênero do
terror, que gerou muito filme raso, sim, mas como formato também oferece um
espaço de criação muito rico. Com isso, quero dizer que nenhum gênero narrativo
é ruim, per se. O Animal Cordial é um slasher por trabalhar com elementos
característicos deste formato - a violência gráfica; a existência de um
executor/assassino/o sangue como elemento dramático central etc. Estas
características, no entanto, estão lá a serviço do drama de personagens que
considero complexos e contraditórios. É precisamente neste lugar que a gente
"descola" do gênero como mecânica de narrativa e partimos para o
aprofundamento das relações entre os personagens. Esse aprofundamento, é bom
que se diga, não é uma questão de gênero (narrativo), mas de dramaturgia -
tanto de texto, quanto visual. Quanto a nossa realidade violenta e cada vez
mais cruel, essas coisas estão no ar, sabe? A forma como eu me relaciono com o
mundo tem a ver com a captação dessas frequências - o que tudo isso produz no
meu inconsciente, nas minhas pulsões de vida, mas também de morte. O processo
criativo, para mim, é uma decodificação (ou uma tentativa de) do que me afeta,
emocionalmente.
[FG] Uma coisa que eu
gosto muito no teu primeiro longa e nos curtas que tive a oportunidade de
assistir é que você não tenta seguir fórmulas, regras, que já estão bem
estereotipadas nesse mundo do cinema de terror. É difícil encontrar uma voz
própria em um gênero que tem tanta coisa já sendo sugerida?
Acho que o que você chama de voz acontece quando um artista
entende o seu lugar no mundo. Ok, estou aqui, agora, estas são as minhas
questões filosóficas, isso é o que me toca etc, então de que forma eu posso transformar
isso tudo - que está dentro de mim - em algo que provoque uma outra
subjetividade? É uma forma de autoconhecimento, isso de achar a sua voz, porque
no princípio é você e sua fé no que você sente. E só. Você e a crença. Você e o
desejo. Não existe parâmetro e/ou legitimação prévia, não existe um chão - daí
vem também a adrenalina de estar desbravando uma coisa que nem você ainda sabe
dizer se presta ou se funciona. Na minha opinião, todos os gêneros narrativos
já estão mapeados e estabelecidos de alguma forma; há de se entrar nas
histórias não através dessa estrutura de texto (que gera falsa segurança), mas
no escuro total; usando a "lanterna" de um gênero narrativo, sim, mas
mantendo o espaço ao redor no breu total. O gênero narrativo é uma chama que
carrego comigo para iluminar o inconsciente, que desbravo à medida que escrevo
as minhas histórias.
[FG] No seu mais novo
longa, você aborda a questão da paternidade, luto, pobreza. Por que você se
interessa tanto pelo terror da vida real?
Porque a vida real é dura e áspera. Porque por mais que
tenhamos nossas necessidades materiais supridas, ninguém, absolutamente ninguém
está livre do medo original: e a morte, quando vem? E como vai ser? A realidade
é assustadora nos mínimos detalhes.
[FG] Por que você acha que
não existem tantas mulheres dirigindo filmes de terror?
É uma questão de ordem financeira. Não de sensibilidade - o
primeiro romance de horror/ficção científica foi escrito por uma mulher
(Frankenstein, Mary Shelley). A diferença entre escrever um romance e dirigir
um filme, no entanto, é imensa. Na escrita de um romance, a mulher está
confinada ao ambiente doméstico; a tarefa é solitária e depende única e
exclusivamente da resistência do autor. No cinema, que é uma atividade outdoors
e de hierarquia bastante marcada, os postos de comando já estão culturalmente
mapeados há anos - e pertencem, adivinhem só, aos homens. O desafio para uma
mulher dirigir um filme é o mesmo de outras mulheres em relação à produção de
conhecimento/cultura que envolva dinheiro e poder na base de sua criação:
medicina, áreas da ciência, matemática, física etc. Chegar em qualquer posição
de destaque, para a mulher, é um perrengue, sabe? Mas estamos aí, tentando e
tentando. E tentando de novo.
[FG] O que você mais
gosta no cinema de terror brasileiro?
O frescor, a mistura de referências, a liberdade nas formas
narrativas.